Bens comuns e crise de civilização

José Correa Leite,
Fev 2009

O “Chamado à recuperação dos bens comuns” apresentado ao Fórum surgiu de uma proposta de Chico Whitacker, apoiada por um conjunto de organizações brasileiras fundadoras do FSM, a partir da constatação de que este é um fio condutor central para qualquer resposta progressista à “crise de civilização” que vivemos.

O Fórum Social Mundial 2009, realizado em Belém do Pará, no Brasil, de 27 de janeiro a 1 de fevereiro, representou um importante avanço na formulação de alternativas à globalização neoliberal e na definição de um horizonte estratégico na luta por um novo modelo de civilização, ambiental e socialmente sustentável, além de construir um calendário de mobilizações globais para o ano de 2009.

As assembléias do último dia do FSM , que formularam conclusões temáticas e podem ser acessadas em www.fsm2009amazonia.org.br, foram de duas naturezas distintas. Uma parte foi das áreas tradicionais do Fórum. Outra foi constituída por processos nos quais se buscavam “alianças” e “convergências” em torno de temáticas novas ou que agora ganharam um destaque inédito. Elas criaram sinergia entre si e terminaram fornecendo elementos para uma perspectiva programática inédita e muito forte.

Politicamente, o processo panamazonico, o indígena, os de justiça climática, direitos coletivos dos povos, crise de civilização e bens comuns constituíram o núcleo desta “aliança”. E outras resoluções, como as do Fórum Ciência e Democracia, da dívida, da guerra e da Palestina dialogaram tranqüilamente com a lógica deste núcleo de posições (junto com várias áreas temáticas mais tradicionais, como direitos humanos, mulheres, negros). A postura adotada nas temáticas deste “núcleo” foi a de formular posições claras em torno de um horizonte para além do capitalismo (posição que não se expressou com a mesma força nas resoluções das assembléias sobre “crise econômica” e sobre “crise e trabalho”).

Se buscarmos um slogan que sintetize o Fórum de Belém, provavelmente chegaremos à formulação “crise de civilização”. Ela foi apresentada, por exemplo, nas intervenções da vasta coalizão de povos indígenas sul-americanos que deu o foco do debate em Belém ou de várias organizações brasileiras fundadoras do FSM. Ela também foi apresentada com o nome “convergência de crises” (ambiental, econômica, alimentar e energética) por organizações como o CADTM.

O “Chamado à recuperação dos bens comuns” apresentado ao Fórum surgiu de uma proposta de Chico Whitacker, apoiada por um conjunto de organizações brasileiras fundadoras do FSM, a partir da constatação de que este é um fio condutor central para qualquer resposta progressista à “crise de civilização” que vivemos.

Originário do debate ambiental dos anos 1960-70, o termo “bens comuns” foi desde então expandido para designar uma série de dimensões da natureza e dos frutos da atividade humana que tinham que ser defendidas dos processos de privatização, desregulação e mercantilização que avançou depois de 1980, com resultados desastrosos para a maioria da humanidade. O “livre mercado” neoliberal, um projeto de poder dos grupos que controlam os atores globais, conheceu um salto de qualidade em 1994, com a formação da Organização Mundial de Comércio e a assinatura do Tratado Relativo à Propriedade Intelectual.

Os bens comuns podem ser elementos fundamentais para a manutenção da homeostase do planeta (os “global commons”), cuja defesa passou a ser, com o aquecimento global e a crise ambiental, vital para a própria sobrevivência da “civilização”; as florestas, os inúmeros ecossistemas e a biodivrsidade, de cuja existência dependem as populações tradicionais, mas que são ameaçados pela disputa global por recursos naturais e pela sua predação; a vida, que com os avanços da genômica e sua transformação em um ramo da economia capitalista também teve que ser defendida como um bem comum (as sementes, o genoma…); os medicamentos, essenciais para a sobrevivência humana, mas controlados por um pequeno número de corporações globais, cujo propósito comercial exclui sua doação aos mais necessitados de amparo; os serviços essenciais, que deveriam ser direitos de todos, mas que vem sendo cada vez mais entregues ao capital em busca de lucro (educação, saúde, transportes, fornecimento de água, saneamento, as estruturas de comunicação, a internet); as culturas, constitutivas das identidades de cada agrupamento humano, mas cada vez mais controladas e homogeneizadas pela indústria cultural; a informação e os programas de computador tornados cada vez mais acessíveis no mundo digital e o conhecimento científico cada vez mais decisivo para a definição das condições humanas, mas cada vez mais ameaçadas por sistemas de copyright e patentes (ao ponto destas se tornarem um obstáculo ao avanço do conhecimento humano); os grandes conjuntos arquitetônicos e históricos e as paisagens marcantes, reconhecidas pela Unesco como patrimônio da humanidade, mas que o mercado freqüentemente transforma em Disneylandias.

Os debates nos FSM anteriores já apontavam um lugar importante para os bens comuns na construção de alternativas à globalização neoliberal. Desde o início, a água, os medicamentos e as sementes foram objeto de luta de importantes movimentos, como a Via Campesina. Mas agora, em Belém, três elementos se combinaram para dar à luta pelos bens comuns uma maior centralidade. De um lado, a crise global, que revelou os limites e a destrutividade de um capitalismo global financeirizado, baseado no calculo econômico mercantil, do valor como quantificação e única medida da riqueza humana. Quando o mercado não consegue quantificar nem mesmo os “produtos” oferecidos pelo sistema bancário e os ativos financeiros, as tentativas de se dar preço à natureza (“mercados de carbono”!) ou ao conhecimento cada vez mais acessível graças à internet e às tecnologias digitais (propriedade intelectual!) parecem cada vez mais patéticas. De outro lado, o Fórum Mundial Ciência e Democracia colocou a questão do conhecimento de ponta produzido na atualidade no centro de suas discussões; e, nelas, a necessidade de se trabalhar para que a ciência se transforme em um bem comum de toda a humanidade. Mas, acima de tudo, na Amazônia tivemos o protagonismo dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas, além da necessidade de se defender a floresta da devastação impulsionada pela extração ou produção empresarial de commodities, que deu muita concretude ao debate sobre formas alternativas de controle dos recursos naturais.

Tudo isso colocou com agudeza o problema da recuperação, da defesa e das formas diversificadas de gestão dos bens comuns e a necessidade de se ir além da disjuntiva entre a grande propriedade privada capitalista e a propriedade estatal normalmente gerida de forma burocrática. As alternativas são muito variadas. Uma estrutura de serviços essenciais para uma dada população pode ser gerida como uma estrutura pública estatal, mas só ganha vitalidade sob formas de controle social que se contraponham as tendências burocráticas. Já a produção de softwares livres é gerida livremente por usuários em regimes de mobilização colaborativa. Mas quem pode administrar os recursos naturais da região andina ou a Floresta Amazônica? Não há representantes dos interesses gerais da humanidade e qualquer forma de internacionalização significa entregar os recursos da região aos poderes globais; mas a defesa tacanha da soberania nacional tampouco impede sua devastação (por pecuaristas, madeireiros, plantadores de soja, empresas mineiras ou petrolíferas). São, porém, regiões povoadas por populações tradicionais cujo modo de vida as torna interessadas na preservação dos ecossistemas locais, mas que só podem fazer isso apoiadas por dinâmicas externas, que as auxiliem a se contrapor às tendências destrutivas ligadas aos mercados nacionais ou globais – ensejando formas complexas de gestão das florestas, savanas, rios…

O “Chamado pela recuperação dos bens comuns” resultou da colaboração ativa de ativistas ligados a dezenas de temáticas, tendo sua redação final sido feita por Frederic Sultan. Começamos agora a coletar assinaturas ao texto, com o propósito de estimular uma discussão global sobre o tema, estimulando uma troca de experiências em escala mundial. Esperamos acumular condições para, nas próximas edições do FSM, desenvolvermos esta discussão em um patamar qualitativamente superior.

O Fórum Social Temático sobre Crise de Civilização – que está sendo proposto para o início de 2010 na Bolívia ou no Peru, entre outras pelas organizações indígenas que animaram vários debates estratégicos em Belém – quer examinar várias dimensões positivas de outro modelo de civilização: justiça climática, bem viver, direitos coletivos, estados plurinacionais… Ele pode constituir uma excelente ocasião para retomarmos o debate sobre os bens comuns como movimento, lógica social e alternativa de organização da dinâmica social.

José Correa Leite, Fev 2009

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